sábado, 26 de setembro de 2015

A Igreja e as práticas esotéricas

Rui Sá Silva Barros


O cristianismo teve que suportar outra singularidade, desta vez anômala. Conforme explicado acima, todas as religiões têm organizações para quem quer se aprofundar na espiritualidade, sem que isto encerre conflito agudo. Foi o caso da Qabbalah judaica e dos grupos sufis islâmicos que deram temas, cantos litúrgicos, pensadores e místicos amplamente reconhecidos. No cristianismo estes grupos afloraram rapidamente (séc. II), mas ao invés de trabalharem em sintonia, entraram em choque com o corpo da Igreja: repudiaram o Velho Testamento e o martírio, advogaram mulheres no sacerdócio e concorreram aos cargos hierárquicos, como o de Bispo (Valentino em Roma). Foram os grupos gnósticos, cujas doutrinas acolheram ecos de hermetismo e dos cultos dos Mistérios, num momento em que a Igreja ainda não tinha organização estabelecida e lutava tenazmente pela sobrevivência, a questão do martírio era essencial e a afirmação do livre arbítrio resultou no combate ao fatalismo imperante na época. A questão dos gnósticos voltou à tona com a descoberta dos papiros em Nag Hammadi, e outra vez os textos são tomados por biografias verídicas quando são documentos religiosos de um grupo cristão egípcio, escritos duzentos anos depois da morte de Jesus.

Durante toda a Idade Média os camponeses continuaram com seus rituais de fertilidade e festas, vindas da mais remota antiguidade. Os padres católicos e os ministros protestantes descobriram surpresos que o mundo rural europeu tinha apenas um verniz cristão e partiram para campanhas de evangelização, a partir do sec. XVI quando usaram e abusaram do terror do inferno e da figura do diabo, a pastoral do medo. Nos últimos séculos medievais, a Europa recebeu um grande fluxo de manuscritos versando sobre alquimia, magia e astrologia, vagalhão só estancado no século XVII pelas monarquias que viam nestas práticas incentivos para a rebelião política.



Da magia cerimonial renascentista publicaram-se livros e artigos que preencheriam uma biblioteca. Apesar de alguns trabalhos valiosos, que estudam a conexão disto com o nascimento das modernas ciências empíricas, o essencial da coisa é perdida, pois os autores ignoram completamente a hierarquia dos saberes tradicionais, onde a magia cerimonial é um saber experimental do mundo intermediário, quer dizer ocupa um posto inferior. Além disto, agora era praticada por indivíduos solitários para aliviar as agruras da vida, em total consonância com o humanismo renascentista. Os autores renascentistas, que desde Ficino, se ocuparam com os textos herméticos não se deram conta da data de redação e muito menos do grau de iniciação que eles comportavam, com práticas meditativas insinuadas. Mas nestas alturas pouco se sabia na Europa sobre estas atividades. A abordagem da Qabbalah, por autores cristãos, também ignorava totalmente o lado prático desta corrente esotérica. Assim que o racionalismo se espalhou a partir do século XVII, a magia foi considerada uma ilusão deplorável, uma quimera insensata e uma exploração da credulidade humana. Naturalmente isto é uma tolice, a magia é perfeitamente real e possível em determinadas condições psíquicas que já eram raras no Renascimento. A feitiçaria foi declarada problema médico. É uma grande ironia que dois católicos ortodoxos (Descartes e Marsenne) tenham combatido o hermetismo renascentista e criado o moderno racionalismo mecanicista que muito colaborou para a dessacralização.

A astrologia teve outro destino, também foi combatida como tolice humana, mas ela estava ligada à prática da medicina, agricultura e metereologia, o que dificultou sua extinção: os calendários anuais astrológicos continuaram a ser publicados. Ademais, era uma época de grande transformação social e as preocupações sobre o destino e a fortuna eram generalizadas. O Tarô, cujos primeiros baralhos foram impressos no século XV, prosseguiu sua carreira silenciosamente e só tornou-se objeto de consideração teórica no século XVIII.
A Igreja romana não tentou reprimir estas manifestações, ao contrário acatou algumas: símbolos zodiacais estão presentes nas esculturas das catedrais e os herméticos também, a partir do Renascimento. O estilo greco-romano foi absorvido por toda arte visual cristã no período com total apoio papal: uma verdadeira revolução acontecia com a cumplicidade do Vaticano, pois apesar da temática religiosa esta arte visual dessacralizava o mundo. A passividade da Igreja era grande e isto se refletiu na vida intelectual: nem sombra dos grandes intelectuais cristãos dos séculos XII e XIII. Mesmo no aspecto místico ocorreu um declínio, San Juan de La Cruz e Teresa D’Ávila foram os últimos no século XVII. Daí em diante a Igreja esteve intelectualmente na defensiva, tratando a Bíblia como depositária de ensinamentos astronômicos, históricos, geológicos etc. Foi o caminho para um conflito com as nascentes ciências empíricas que provocou mais confusão e isolou a Igreja dos intelectuais laicos. A partir do final do século XVIII o mundo ocidental foi moldado totalmente por forças seculares: liberais, positivistas e toda gama de socialistas.

O cristianismo estava completamente despreparado para o mundo moderno oriundo da revolução industrial e do Estado laico. Finalmente ganhava independência, mas penou um bocado: a urbanização acelerada encontrou a Igreja com poucos sacerdotes, ideologias laicas antagônicas (liberalismo, socialismo e anarquismo) repudiaram sua presença. As congregações (marianas, sagrado coração) foram essenciais, pois a frequência aos cultos e sacramentos caíra muito no sec. XIX. Batalhas amargas sucederam-se pelo controle da educação primária. As visões de Anna Emmerich e as aparições da Virgem em Lourdes deram fôlego à devoção. No século XX, a Igreja finalmente se deu conta de que o Antigo Regime estava destruído e não havia volta: teria que aprender a atuar num mundo já secularizado, o que foi tema essencial no Concílio Vaticano II, na década de 1960.

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